Uma história para falar do meu desejo de produzir
Esses dias lembrei de uma das tantas pérolas de um produtor veterano da Rádio Bandeirantes em Porto Alegre. Quando um repórter estagiário estava prestes a estrear ao vivo, seja no estúdio ou passando um boletim de trânsito pelo telefone, José Carlos Roque aconselhava: “Vai, só não fala m#$%”. Basicamente, o que ele queria dizer era que se você não tinha certeza de uma informação, talvez fosse melhor não dizê-la “no ar”. A máxima do Roque certamente não era o melhor dos conselhos, mas evitava problemas futuros para o repórter e também para o produtor.
Eu quero acreditar que responsabilidade é um princípio que constitui a maioria dos produtores de conteúdo. Afinal, o ouvido de quem escuta/consome informação não é penico. Como jornalista, a gente tem a tendência em acreditar que esta é uma prerrogativa quase exclusiva de quem trabalha com conteúdo assinado ou desprovido de anonimato. Na minha escola de jornalismo os professores sempre bateram na tecla de que somos sempre responsáveis pelo que colocamos no mundo, mesmo que seu nome não apareça nos créditos.
Eu sei que esse é um papo que aparece cada vez menos nas redes, como se fosse um assunto superado, uma terra arrasada tanto por parte da sociedade civil quanto pelos próprios profissionais. A confiança na mídia segue caindo, mesmo após um breve respiro de credibilidade em decorrência da pandemia. Somos a categoria mais menosprezada atualmente e isso nos afeta quase sem percebermos.
Há de se considerar, no entanto, que existem excelentes discussões sobre reputação e confiança no jornalismo em grupos segmentados de comunicadores. Para ficar apenas no Brasil, o Farol Jornalismo é o bastião dessa discussão e de muitas outras envolvendo a prática e teoria jornalística.
Mesmo assim, eu ainda acredito que a base da profissão está na credibilidade que se constrói ao longo da carreira. Para além da responsabilidade com a mensagem que se está transmitindo, há um outro aspecto que talvez seja ainda mais urgente: a palavra do jornalista.
Recentemente, estava ouvindo o podcast The Catch and Kill, que conta os bastidores das reportagens investigativas de Ronan Farrow, sobre o caso Harvey Weinstein, e transformadas em livro. No segundo episódio, intitulado The Producer, Farrow conversa com Rich McHugh, o produtor de TV que trabalhava com ele quando ambos serviam a NBC, logo no início das investigações do caso.
Na conversa, McHugh comparou a experiência que viveu dentro da rede de televisão com a que viveu Lowell Bergman, então produtor do lendário 60 Minutes da CBS. Ele foi interpretado por Al Pacino no filme O Informante (The Insider, 1999), de Michael Mann. Quando McHugh se deparou com os seus chefes falando em “tortious interference”, o que pode ser traduzido por “interferência intencional numa relação contratual”, McHugh caiu para trás: “Ninguém aqui por acaso assistiu O Informante?”
É claro que estamos diante de uma lenda do jornalismo. Lowell Bergman, depois da longa carreira como produtor e jornalista investigativo, foi professor por 28 anos na Universidade da Califórnia, em Berkley. A cena acima é um dos melhores discursos sobre a essência do jornalismo e da importância do papel de um produtor. Até assistir este filme, McHugh disse que nunca pensou em fazer jornalismo. O filme, de fato, é um clássico dentro dessa temática e deveria estar no currículo de todas as faculdades de comunicação.
Diferente de Todos os homens do presidente (All the President’s Men, 1976), em que a história é contada da perspectiva dos repórteres Carl Bernstein e Bob Woodward, em O Informante, não temos apenas a perspectiva do produtor Lowell Bergman. O diretor Michael Mann traz também o outro lado da atividade jornalística, nos colocando em contato com as ameaças e as preocupações da fonte: o bioquímico e whistleblower Jeffrey Wigand, interpretado por Russell Crowe.
Eu mesmo só fui assistir O Informante depois de formado e muitos anos depois de ter passado pela Rádio Bandeirantes. Não quero ficar aqui me depreciando, mas eu nunca tive o espírito de Dom Quixote, como Will McAvoy em The Newsroom (2011), personagem vivido por Jeff Daniels com a missão de civilizar por meio da notícia.
Por que muitas vezes quando eu estava com a missão de produzir uma entrevista para a rádio, ou para contatar qualquer fonte, parecia que faltava algo. É claro, quando se é um “foca”, um novato no jornalismo, falta experiência e o medo de falar uma besteira é superdimensionado. Produzir é um exercício de coragem constante tanto ou mais difícil do que reportar.
Em outra cena memorável de O Informante, mesmo debaixo de chuva, Bergman vai ao endereço de Wigand para dar sua palavra, algo pouco valorizado nos dias de hoje: “Eu vim até aqui para te contar: história, sem história, dane-se sua história, eu não queimo as pessoas”.
Ao longo dos anos, eu tive muitas dificuldades em dar minha palavra. Eu não sei se minha carreira como produtor teria sido diferente se eu tivesse assistido este filme nos tempos em que trabalhava em veículos. A questão é que assumir o desejo em trabalhar com jornalismo passa por não ser indiferente. É estar constantemente renovando a esperança na atividade jornalística, na palavra.
Conto esta história também para anunciar que decidi renovar minhas apostas. Passei de colaborador eventual para produtor fixo do Cuscocast, um podcast sobre música independente com uma boa dose de humor.
Apesar de não existir uma diferença explícita para quem ouve os episódios, para mim e para os idealizadores do programa, há uma certa mudança. O papel que desempenho agora é outro. Poder dizer que você é produtor de um programa não é ostentar um cargo bonito no Linkedin, mas é a responsabilidade que recai sobre mim. É a minha palavra em jogo.
O primeiro episódio que produzi é uma conversa/entrevista com o músico Arthur de Faria, que acaba de ser lançado nos tocadores de podcast. Ouça no Spotify e siga nosso Instagram.